Família

A mudança é agora: está na hora de criar crianças antirracistas

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Publicado em 26/07/2020, às 09h37 - Atualizado em 14/11/2023, às 16h20 por Redação Pais&Filhos


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A primeira vez que consigo me lembrar de ter sofrido racismo foi no Ensino Fundamental. Cheguei na escola numa segunda-feira e ouvi meus colegas brancos comentarem sobre o aniversário de uma das alunas da classe. Logo percebi que tinha sido uma das únicas crianças a não ser convidada para a festa. Em vez de sentir raiva da colega, eu senti culpa. E para diminuir esse sentimento, pedi para a minha mãe comprar um presente bem lindo para a menina. No dia seguinte, eu entreguei o presente, na tentativa de me desculpar por não ter sido convidada para a festa.

Precisamos assumir nossa responsabilidade de combater o racismo começando por dentro de casa (Foto: Getty Images)

Esse episódio provavelmente deve ter abalado minha autoestima, e talvez seja por isso que hoje o meu trabalho é ensinar famílias, assim como a sua, a criarem crianças brancas antirracistas e a fortalecer a autoestima das crianças negras. Esse é um tema muito sério, que pode trazer danos graves para a vida das crianças, como aponta Danubia Cristina de Paula, filha de Marilda e Antonio de Paula, e psicóloga no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “Em idade escolar o efeito do racismo na saúde mental das crianças pode ser agudo e crônico, que é quado elas são expostas diariamente à situação de humilhação e estresse”. Os traumas infantis podem afetá-las integralmente. Ou seja, nas esferas cognitiva social, física moral, e principalmente emocional”, alerta a especialista. Eu vejo o racismo acontecendo nos parques, nos aniversários, nas escolas, nas praças. Eu vejo o racismo no olho da criança branca bem pequena, quando ela me olha- algumas vezes com espanto, outras com indignação.

Talvez por eu ser uma mulher adulta, elas nunca me falaram nada. Mas com a enfermeira Cíntia Fleury, casada e mãe de três filhos, um menino falou. “Um dia fui numa pizzaria para buscar o jantar e quando estava passando no caixa o filho dos donos do lugar estava ao lado da mãe. Era um garoto pequeno, de uns 6 anos. O pai estava dentro da cozinha, fazendo as pizzas. O menino me olhou e falou bem alto: ‘Por que você é preta assim? você está suja? acho que você não toma banho e deve estar preta de sujeira’”, a enfermeira lembra. “A mãe dele ficou morrendo de vergonha e começou a dar bronca, mandando-o ficar quieto. O pai veio da cozinha bravo. Eu os repreendi, disse que não deveriam brigar com o filho, pois ele provavelmente estava reproduzindo falas racistas que ouviu dentro de casa. Saí muito nervosa, até esqueci de pegar a pizza. Fiquei pensando que se aquele garoto falasse aquilo para alguns dos meus filhos, o quanto iria machucar a autoestima deles”, contou Cíntia.

O silêncio é o maior inimigo

Durante as minhas pesquisas, entendi que as famílias tem muita dificuldade em falar de racismo com as crianças e acreditam que por não discriminarem pessoas negras na frente delas, os filhos não serão racistas. Mas crianças estão o tempo todo aprendendo. Silenciosamente, algumas crianças brancas acreditam que são superiores, aprendem a conviver com o igual e repelir o que é diferente. Enquanto isso, as crianças negras podem acabar com a autoestima baixa. “Isso não costuma ser consequência de uma única causa, mas acontece um processo identitário inserido em um meio social histórico e cultural. Um dos caminhos é a valorização da diversidade e da identidade negra. É preciso mostrar para as crianças negras o quanto ser negro é potente e lindo, porque para elas isso significa poder ser quem elas são”, indica Danubia. Ou seja, quando acontecem episódios de racismo, o silêncio só ajuda a consolidar essas ideais de inferioridade e superioridade.

Não é tão simples assim

O racismo é uma narrativa que vai se articulando com a estrutura que mantém as hierarquias sociais e econômicas de poder do nosso país. É por meio das representações sociais do negro na mídia, nos espaços e na escola, que as crianças tanto negras, quanto brancas, entendem e internalizam essas hierarquias, passando a atuar a partir delas. Essa hierarquização da imagem e do poder passa a ditar os valores nos diversos aspectos das relações sociais: determina o que é belo e o que é feio; quem são os mais inteligentes; quem são os mais capacitados; quem são os poderosos; e quem tem, na prática, mais ou menos direitos, quem pode viver. Para se ter ideia, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, segundo os dados do relatório Mapa da Violência, de Julio Jacobo Waiselfsz.

Em episódios de racismo, converse com seu filho: o silêncio só ajuda a consolidar ideais de inferioridade e superioridade (Foto: Freepik)

 

É sua responsabilidade

Já deu para perceber que estamos “lascados”. Se ninguém na sua família pegou coronavírus, o “racismovírus” com certeza tem contaminado várias pessoas, e o mais triste é que tem matado muita gente, principalmente os jovens – e para isso não há vacina. No caso do racismo, cada um de nós precisa encarar a realidade e arregaçar as mangas para mudar. Nesse processo, tudo precisa começar por nós, os adultos. Não adianta pensar em fazer uma educação antirracista se os pais – ou os adultos por perto – continuarem a reproduzir o racismo próximo das crianças. Antirracismo é ação. É essencial repreender aqueles que estão se comportando de forma racista. Não tem jeito, a gente vira o “chato do rolê” mesmo. Mas eu penso que se essa atitude faz com que menos crianças sofram os impactos do racismo e que pessoas não percam oportunidades, direitos ou a vida, por causa da cor da pele. Vale a luta.

De olho na sala de aula

Assim como no meu caso, é na escola que a maior parte das crianças negras sofrem os primeiros episódios de racismo. Foi assim também com Rodrigo, filho da Cíntia. A direção e os professores indicaram que ele tinha déficit de atenção, já que o garoto estava com desempenho ruim nas disciplinas. Mas o ápice foi quando ele, após sofrer diversas violências racistas, agrediu um aluno. “Quando fui conversar na escola, ela insinuou que éramos uma família desestruturada e por isso, meu filho estava se comportando daquela maneira. Foi difícil encarar a realidade, mas percebi que o tempo todo era o racismo”, a mãe desabafa. Após vários exames para identificar o déficit de atenção, o diagnóstico foi de que ele tinha apenas um pequeno atraso na aprendizagem, o que pode ser comum em muitas crianças. “Eu fiquei decepcionada principalmente pela escola não reconhecer o racismo. Fui aconselhada a mudar meu filho de instituição de ensino, já que a situação não iria mudar. Depois que troquei ele de escola, as notas melhoraram, e a autoestima também,” conta Cíntia. Diferentemente do bullying, em que a agressão parte de crianças para crianças, o racismo no ambiente escolar pode partir dos professores, diretores, coordenadores, funcionários,  crianças e pais de colegas de classe.

Está na lei

A pedagoga Mafuane Oliveira, filha de José e Carmelita, e criadora da Cia Chaveiroeiro, companhia de narração de contos tradicionais africanos e luso-afro-ameríndios, tem contado histórias em diversos espaços para que a imagem do negro, sua cultura e contribuição na sociedade mudem. “Contar e ler histórias é importante para todas as crianças – negras e brancas. Era por meio delas que no passado se transmitiam os valores, cultura, regras e conhecimentos. Agora não é diferente. Precisamos pensar que tipo de histórias narramos e para quem estamos contando, principalmente nas escolas, já que é por meio delas também que as crianças criam o imaginário de quem são e de quem poderão se tornar”, afirma. Em 2003 foi criada a Lei 10.639, que obriga o ensino da cultura e história africana e afro-brasileira nas escolas públicas e particulares. A publicação alterou a Lei de Diretrizes Básicas da Educação (LDB) e tornou obrigatório que se conte sobre a luta, contribuição do negro e do indígena como sujeitos históricos plenos,  com participação importante na construção da sociedade brasileira.  “Nas séries iniciais da escola, a narrativa do negro ainda fica presa somente às músicas e nas histórias que deturpam a sua imagem, são narrativas que têm problemas. Quando tratamos da contribuição do negro só a partir do 5o ano do Ensino Fundamental, a criança já construiu toda uma imagem negativa sobre o negro. Precisamos oferecer referências visuais desde o berçário para derrubar estereótipos, para que as crianças, desde cedo, passem a enxergar a potência e a importância dos negros no Brasil”, afirma Mafuane. Para que os episódios de racismo acabem de vez no ambiente de ensino, a escola precisa aplicar a lei e se comprometer em promover uma educação que contemple a diversidade, além de estar disposta a dialogar sobre o racismo sempre. E os pais devem cobrar isso da instituição.

Está nas suas mãos…

O fim do racismo na infância. Tanto no meu caso, como o que aconteceu com a Cíntia, com o Rodrigo e com a Ana Raquel, existem sempre crianças brancas promovendo essa violência. Os pais precisam estimular a educação antirracista para que essa realidade de agressões na infância mude. Lembre-se, depende de você, e o silêncio, neste caso, não é uma opção. Para começar, dê referências ao seu filho que contemplem a diversidade. E como em qualquer outra questão na educação, o diálogo é sempre o melhor caminho. Neste papo, procure entender se existe racismo internalizado no seu filho, levante questões como: qual sua opinião sobre pessoas negras, indígenas, deficientes, e outras minorias? Explique a ele que existe racismo no Brasil, e que vocês, juntos, precisam se engajar nessa luta. Ensine que as características físicas e comportamentais das pessoas nunca poderão ser motivo de risadas ou brincadeiras. Na prática, você pode valorizar e incentivar relações de amizade e afeto com pessoas diferentes. E, se caso acontecer um episódio de racismo entre as crianças, intervenha imediatamente, mas sem violência, mas sem violência, claro. Questione-as e ensine-as. Se forem pessoas mais velhas, seja firme. Afinal, racismo é crime. E não se esqueça: estamos nessa juntos, por um futuro mais justo para as todas as nossas crianças.


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