Publicado em 26/06/2020, às 16h26 - Atualizado às 16h30 por Toda Família Preta Importa
** Texto por Débora Bastos, mãe de José, do criando crianças pretas
Você sabe por que ultimamente tanto se fala em racismo estrutural? É porque todos nós estamos pisando nesse mesmo chão. O racismo estrutural está na forma como aprendemos, como vivenciamos e em como ensinamos as crianças, que de fato não nascem racistas, mas aprendem muito rápido.
A frase de Angela Davis, americana ativista pelos direitos civis, está mais atual que nunca: “Em uma sociedade racista, não basta não ser racista é preciso ser antirracista” e o antirracismo é ação. As pessoas antirracistas precisam entender que combater o racismo não é caridade é tomada de responsabilidade.
Sabe a representatividade? Ela não acontece quando uma pessoa negra se destaca na TV. Nem quando uma criança preta encontra uma boneca que pareça com ela. A representatividade acontecerá (sim, somos esperançosos) quando o combate ao racismo for eficiente o bastante para que pessoas negras estejam nas tomada de decisões, nas posições de liderança, no poder institucional.
Isso, sim, muda a estrutura e é mudando a estrutura, mudando a forma como essa engrenagem social funciona que nossas crianças pretas poderão sonhar com a liberdade de ser o que elas quiserem. Há alguns meses atrás, o Criando Crianças Pretas fez uma carta para as “mães brancas” e essa carta de peito aberto de “mãe para mãe” é um convite para que possamos educar nossos filhos juntos e valorizando a beleza de sermos diferentes.
“Querida mãe branca,
Você deve ter achado estranho, porque provavelmente é primeira vez que te chamam assim, de ‘mãe branca’. Mas é que eu, a todo o momento sou chamada, em todos os espaços de ‘a mãe negra’, isso porque você é o padrão e eu sou a exceção.
Quando somos únicas em um ambiente, muitas coisas acontecem e isso não é de agora, desde a escola isso acontece, ouve essa história:
Uma menina negra, de mais ou menos 8 anos, chegou segunda-feira na escola e ouviu os colegas brancos comentarem sobre o aniversário de uma das alunas da classe. Ela logo percebeu que tinha sido a única criança a não ser convidada para a festa.
Em vez de essa menina sentir raiva da colega, ela sentiu culpa, e para diminuir a sua culpa por não ter sido convidada para a festa, pediu para a sua mãe comprar um presente bem lindo e caro. No dia seguinte, essa menina negra entregou o presente para a colega, na tentativa de se desculpar por ter sido a única criança da sala de aula a não ser convidada para a festa.
Essa menina é Paula Batista e ela te pergunta: Quais crianças seus filhos estão ESCOLHENDO para a festa do aniversário deles?
Tem outra história: Com 12 semanas de gravidez, uma mulher perdeu seu filho, o que a fez se sentir a pessoa mais fracassada do mundo, alguns dias depois do aborto seu marido precisou viajar a trabalho para outro país e ela, que mal estava conseguindo levantar da cama, foi para a casa de sua mãe que era em outra cidade.
No meio do caminho parou o carro num posto de gasolina, desceu e foi comprar uma água. Na volta, não encontrava as chaves no bolso, ficou ao lado do carro e verificou se tinha deixado a porta do carro aberta, aí um segurança chegou gritando: ‘O que você está mexendo aí?!’.
Nisso ela achou a chave no bolso e a mulher ficou tão imobilizada, sentindo uma mistura de dor e raiva que só a fez destravar o alarme do carro, entrar e chorar debruçada ao volante.
Essa mulher sou eu, Deh Bastos, e você consegue imaginar o que eu senti? Por que será que aquele segurança me confundiu com alguém que não poderia ser dona daquele carro novo? Por que será que ele me tratou de forma tão hostil?
O Criando Crianças Pretas nasceu assim, duas ex-crianças pretas que acreditam que a comunicação antirracista pode transformar as relações.
Eu sei que tudo isso que acabei de contar é muito dolorido, mas calma, antes de você vir me dizer que nunca faria isso e começar a listar todos os seus negros de estimação, eu peço que você PARE e entenda uma coisa: eu, você e todo mundo reproduz falas e comportamentos racistas. E eu vou te dizer mais, as crianças aprendem isso muito cedo.
Olha só que interessante, quando nossos filhos são pequenos a gente ensina que tem cor para tudo, o sol é amarelo, as árvores são verdes, o céu é azul e tem algumas percepções que eles fazem sozinhos e de repente, começam a identificar as cores com muita naturalidade e a gente acha lindo, né? Aí nos ambientes que vocês convivem ele começa a perceber que pessoas de uma cor de pele estão servindo e pessoas de outra cor de pele estão mandando.
Que cor de pele tem as pessoas que são tratadas, inclusive por você, com indiferença? Que cor tem a pele das pessoas que são tratadas com respeito e afetividade por você, por sua família, por seus amigos? É assim, dessa forma que as crianças compreendem a sociedade estruturalmente racista e passam a reproduzir.
Quer ver como eles reproduzem? É muito comum a gente ver na porta das escolas particulares o tio da portaria, que na maior parte das vezes é um homem negro e ele fica com o guarda-sol abrindo a porta dos carros para as crianças descerem.
É muito raro ver uma criança cumprimentando esse profissional, agradecendo, desejando bom dia. Agora reflita: com quem essas crianças aprenderam a ser assim? Essas pessoas são invisíveis aos olhos dos SEUS FILHOS que aprenderam a enxergar e respeitar apenas pessoas de uma cor e a desprezar pessoas de outra cor de pele.
E você, mãe branca, agora deve estar se perguntando: o que eu faço com toda essa culpa que você jogou em cima de mim, Deh?
E eu te digo novamente, CALMA estamos pisando na mesma estrutura racista construída há anos e que vai demorar um pouco para desconstruir. E eu gostaria muito que você estudasse o que é ‘racismo estrutural brasileiro’ e o que foi feito com o povo preto no nosso país até hoje. Você sabia que houve uma política de acabar com os negros no Brasil até 2011?
Mas óh, eu acredito que é possível e acredito que será realmente possível se estivermos todas juntas nessa luta. Não há uma resposta pronta, uma fórmula mágica ou um manual de boas práticas, mas eu posso compartilhar aqui com você o que eu tenho feito para criar uma criança antirracista.
Eu costumo ter um olhar 360 para os espaços que o meu filho frequenta. A escola, o clube, o condomínio, o shopping reproduzem a estrutura racista que eu não quero para meu filho? Então, onde, nesses espaços, eu posso interferir para ser diferente?
Posso por exemplo, sugerir na escola que tenham bolsas para alunos negros, que as ilustrações na parede da escola tenham diversidade, que o material didático contemple essa diversidade, que a escola capacite todos os funcionários, professores para falar sobre esse assunto. Todos, devemos começar a tratar as pessoas negras à nossa volta com RESPEITO.
Descubra o nome da mulher da limpeza, apresente o porteiro para o seu filho, passe a chamar essas pessoas pelo NOME e a tratá-las com dignidade, elas estão ali porque não tiverem oportunidades iguais a mim, iguais a você, iguais aos nossos filhos.
Estou chegando ao fim dessa carta e não quero que você pense que tudo isso que eu disse vai beneficiar apenas as pessoas negras, essa carta não é sobre fazer caridade. Precisamos preparar nossos filhos para a inovação e diversidade é inovação.
No futuro aquela pequena criança vai se formar e vai trabalhar numa empresa em que precisará lidar com a diversidade e se ele não aprender a conviver e respeitar o diferente, ele terá muitos problemas na carreira.
Eu, de verdade acredito que só há esperança nas crianças e também acredito que só dá para ter um mundo antirracista se estivermos todos juntos na mesma luta, TODAS JUNTAS.
Eu conto com você e conto com o seu filho também nessa luta. Conte para ele, conte pra ela que existe racismo no Brasil, que as pessoas são tratadas diferentes só por terem uma cor de pele diferente e que isso é errado, que racismo é crime porque mata.
Ensine sua criança a respeitar, enxergar e admirar as pessoas negras que estão em volta de vocês. Consuma intelectualidade de pessoas negras, dê livros com personagens negros e brinquedos negros para as crianças, no nosso Instagram tem muitas dicas.
Não esqueça mais disso, querida amiga: as crianças são mais instruídas pelo nosso comportamento do que pelas nossas palavras. Então olhe em volta do seu mundo e observe: Que referência de mundo você está oferecendo para o seu filho? ACREDITE: isso vai fazer a diferença!”
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