Publicado em 03/02/2023, às 13h15 - Atualizado em 07/02/2023, às 09h08 por Claudia Werneck
Temos hesitado em ensinar às crianças que também devem proteger outras crianças. Sociedade civil e governos, ainda que alinhados com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), postergam a experiência de formar uma nova geração de meninase meninos atenta à vida e à denúncia de experiências danosas, vivenciadas por quem compartilha com elas a experiência de ser criança naquele território físico e em idêntico momento histórico.
Gerações são conjuntos indivisíveis. Crianças, juntas, na escola, devem testar desde cedo sua ética. Isso inclui descobrirem juntas o quanto podem ajudar e serem ajudadas, num exercício mútuo e sistemático de empatia e de ação.
Três histórias:
Há muitos anos, vi uma adolescente se engasgar seriamente na praça de alimentação de um shopping no Rio. Seu namorado, também adolescente, ficou atônito, gritou, e algumas pessoas se levantaram para ajudar. Mas não foi necessário. Rapidamente, uma adolescente que estava em outra mesa correu para a jovem e lhe aplicou com destreza aquela famosa manobra, liberando então o pedaço de sanduíche que causava o engasgo. Impressionada com o modo como aquela adolescente ajudou a outra, perguntei: onde você aprendeu isso? Na minha escola, ela respondeu, tínhamos aula de primeiros socorros todo dia (ela havia estudado em outro país, me explicou)
Quando eu tinha 10 anos, minha prima, de 8 anos, me salvou de ser abusada pelo nosso professor de natação do clube perto de casa. Ainda que ele pedisse – primeiro muito gentilmente, depois, energicamente – para que minha prima nos deixasse sozinhos, ela não arredou o pé por horas, já que estávamos apenas os três e ele me encurralava nos halls dos edifícios do quarteirão onde morávamos, no Grajaú. Décadas depois, ela relembra: “eu não sabia o que ele queria fazer com você, mas sabia que deveria impedir, porque via o desespero nos seus olhos”. Paralisada, eu não falava nada.
Por fim, na noite do dia 24 de dezembro de 2022, na cidade de Guaratinguetá, em São Paulo, um menino de 10 anos pulou na piscina para salvar o irmão de três, que nela havia caído. A criança foi mais rápida do que qualquer pessoa adulta ao redor. O vídeo teve milhões de visualizações em toda a mídia nacional.
Crianças devem ser protegidas prioritariamente por pessoas adultas e instituições, prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mas isso nem sempre acontece em tempo hábil – por maldade, ignorância, ou diversas outras razões. Daí ser fundamental dar informação e fomentar nas crianças o sentimento de que podem, também, se proteger e às demais crianças. Educar nessa direção seria responsabilidade das famílias, da escola, de projetos sociais que têm como foco a infância e dos governos.
A infância é educada como um grupo coeso para lidar com os abusos – não apenas sexuais – e os ataques agressivos do mundo adulto? Como as crianças agem diante de acidentes, se estão sozinhas? São incentivadas a agir diante de um perigo, ainda que familiares ao seu redor não vejam o perigo – como no caso do menino que salvou o irmão menor caído na piscina? São rápidas nas decisões ou esperam um sinal de pessoas adultas sobre o que fazer?
Salvar vidas. Entendo que este possa ser um objetivo na formação de crianças, dando-lhes detalhes de qual pode ser o seu papel, ainda que limitado, para proteger a integridade de cada geração.
Uma criança com asma pode até morrer se, no recreio da escola, for instigada a correr num dia de crise, por exemplo. Uma criança com alergia alimentar grave terá problemas sérios de saúde se, numa brincadeira, for sugestionada ou intimidada a comer o que lhe faz mal. No caso de engasgos, não seria muito interessante e útil que toda criança pudesse aprender a agir diante do acidente e impedir que algo grave acontecesse?
Temos receio de falar de morte. Consequentemente, de falar sobre como preveni-la. Infelizmente, somos muito tímidos em nossa capacidade de educar crianças na direção desse tipo inestimável de ajuda e proteção mútua. Famílias, escolas, projetos sociais, conselhos tutelares, conselhos de direitos, ministério público, empresas, organizações internacionais e governos precisam entender que formar gerações aptas a praticar a intraproteção é um tema de direitos humanos.
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