Publicado em 01/01/2015, às 22h00 por Ana Guedes
Cuidado com a culpa. Ela sim, sem perceber, nos pega daqui, nos pega de lá, pior que a Cuca do Sítio do Pica Pau Amarelo.
E começa na infância.
A culpa, ou melhor, o sentimento de culpa, como diz um grande psicanalista, “não serve para nada”, o sentimento de responsabilidade pessoal sim.
De uns tempos para cá decidi tentar o inevitável, ao menos um pouco, dentro de casa.
Aqui meu filho não tem culpa de nada. Nem de virar refrigerante de propósito no sofá.
E não, não foi sem querer, mas também não foi de propósito, foi porque ele teve vontade, porque ele quis. Responsabilidade dele de cuidar.
Quer ir para a escola sem comer? Pode. Mas saiba, vai ter fome, é uma escolha tua.
Sim, coloco abacaxis no colo do Pedro, abacaxis que ele pode descascar. Os que ele não pode, descasco eu, mas explico, isto é vontade, precisamos fazer tal coisa, ou vamos combinar o que queremos, mas nunca o que achamos que devemos fazer.
A vida vai se encarregar de cobrar dele, de tentar convencê-lo de ser um devedor: devo isto, devo aquilo, devo me comportar como todo mundo.
E vai-se o Pedro, o único, para tornar-se mais um. E some o Pedro dono do seu nariz.
Não, ele não pode tudo. Mas como toda a criança, e depois todo o adulto, tende a achar que as coisas acontecem por causa dele.
Não. Não somos o centro do mundo.
As coisas acontecem independentemente da nossa vontade. A ordem da vida é a desordem, melhor aceitar desde cedo.
Sandor Ferenczi, psicanalista húngaro, conta que brincando no chão da sala, uma criança vê o pai chegar do trabalho, muito nervoso.
Por hábito, não a cumprimenta e ainda dá um suave solavanco no pequeno, que pensa apenas o que pode pensar:
– O que foi que EU fiz? Algo meu enfurece meu pai. E fui eu!
Ele não pode e nem tem condições de concluir:
– Está nervoso, brigou com o chefe, ou pior, estou sendo criado por um papai meio confuso.
Para salvar o pai, culpa a si.
Melhor do que ter um papai confuso.
E começa a interminável jornada do “O que foi que EU fiz”.
Assim a criança, e depois o adulto, começam infelizmente a acreditar que as coisas acontecem por culpa dela. Ou por culpa dos outros, o que dá no mesmo. Se isto aconteceu foi por causa disso. Dada a explicação, não fazemos e nem podemos fazer nada.
Aqui estamos tentando responsabilizar o Pedro. Quebrou o brinquedo novo? Tudo bem. Da próxima vez teremos mais cuidado. Desta vez não tivemos.
Não tratou a mamãe bem, foi rude, tudo bem, tens direito, eu nem sempre estou bem, mas a vontade foi tua. A mamãe também fica triste.
O sentimento de responsabilidade exime o sentimento de culpa, mostra para a criança que ela faz e pensa o que quer, o que tem vontade, por que ela quer.
E não por culpa minha, sua ou dela.
A culpa paralisa.
A responsabilidade assumida é o único modo de mudar, a nós e a eles. De, como diz Friedrich Nietzsche, “Tornarmo-nos o que somos”.
E no nosso caso, deixar de ter funções amedrontadoras: O pai. A mãe. E virarmos gente, que sente como eles. Início de profundo diálogo franco e amizade.
A culpa evita amizades, paixões, e diálogos francos. A culpa, por culpa mente. Como ensina Sigmund Freud, o assassino não mata e sente culpa. Sente culpa. Por isso mata.
Fuja da culpa, da crítica negativa. E ensine seu pequeno que ele pode escolher, escolhendo nos responsabilizamos, problema nosso que podemos resolver.
Sentindo culpa, o problema é insolúvel e insalubre.
E disto a vida se encarrega.
Comece em casa, pois a culpa te pega, te pega daqui, te pega de lá.
E isso é inevitável e “Humano, demasiado humano”.
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