Publicado em 17/08/2017, às 07h27 por Ana Castelo Branco
A gente tinha uns 10 anos. Minha amiga se chamava Ângela. Morávamos no mesmo prédio, em Brasília, e era super comum nós e todas as outras meninas da turma vivermos umas nas casas das outras. Podia ser um almoço na Monique, um lanche na Valéria (que tinha o maior coelho de estimação que já se teve notícia) ou um jogo de mímica na minha casa. Mas, nunca, nunca, a gente ia na casa da Ângela. Todas tinham um palpite: os pais dela eram muito bravos e não gostavam de bagunça.
Até o dia em que surgimos naquele apartamento. Do nada. Não me lembro o motivo, mas lembro da sensação de estarmos fazendo algo escondido. Talvez buscando algum brinquedo. Lembro da gente entrando devagarzinho e da preocupação em não fazer barulho. Lembro de esperar no corredor enquanto a Ângela ia atrás de sei lá do quê. E lembro da porta de um quarto abrindo. Mais lenta e cuidadosa que nossos movimentos.
No vão, surgiu um rostinho redondo. Cabelos muito lisos com franja. Ela olhou para mim, sorriu, segurou minhas mãos e me puxou para dentro do seu mundinho. Parecia cena de sonho. Tudo era estranho. Eu nunca tinha visto ninguém parecido. Nem em aparência e nem em atitude. Os olhos puxadinhos, uma mão muito fofinha com dedinhos curtos, a boca muito muito ressecada, toda descamando, que não parava de me beijar.
O breve rapto, os beijos, a aparência ou a atitude, nada daquilo me assustou. O que me deixou confusa e nunca mais esqueci foi: a escuridão, o silêncio e o cheiro daquele quarto. Uma sensação de vazio enorme. A certeza de que nada, absolutamente nada, acontecia ali. O cheiro. Poxa, foi ele que mais me marcou. Sabe cheiro de quarto fechado há muito tempo? Cheiro de que alguém dorme e acorda ali vários dias seguidos sem abrir uma janela? Então.
Este era o motivo das nossas não-visitas ao apartamento da Ângela. A irmã dela. Ela era um pouco mais velha que a gente e tinha síndrome de down. Ou, no bom português dos anos 80, ela era mongolóide. E os pais tinham uma vergonha imensa. Mal sabiam estes pais que este era o maior problema daquela menina de quem eu nunca soube o nome. Um cromossomo a mais muda muita coisa. Mas julgamento e penitência vindas dos próprios pais muda mais ainda.
A ausência da fala, pode botar na conta da falta de estímulos. Culpa do quarto escuro e de cheiro estranho.
Já a boca toda descascando (tanto que devia até doer) era pura falta de cuidado. Pessoas com síndrome de down tem esta tendência à pele ressecada e, muitas vezes, a respiração pela boca piora o problema. Mas a respiração pela boca também era resultado da falta de estimulação apropriada. Culpa do quarto escuro e de cheiro estranho.
Os beijos em minhas mãos e os carinhos em meus cabelos não aconteceram porque “eles são muito carinhosos”. Eram frutos de uma carência e de uma solidão sem tamanho. Culpa do quarto escuro e de cheiro estranho.
O maior problema da irmã da Ângela, a menina que não tem nome, não era ter um cromossomo a mais. Era ter uma vida de menos.
Culpa do quarto escuro e de cheiro estranho.
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