Publicado em 14/05/2021, às 08h23 - Atualizado em 20/05/2021, às 09h30 por Toda Família Preta Importa
**Texto por Silvane Vasconcelos, bisneta de parteiras, neta de benzedeira, pediatra pela Universidade Federal de São Paulo. Mulher negra, mãe da Isabel e dos gêmeos Bento e Joaquim, apoia, acompanha e acolhe mulheres em suas narrativas e travessias como mães
São 4 horas da manhã, tudo é silêncio e escuridão. Recostada na cabeceira da cama, amamento meu bebê. Todos dormem, enquanto eu sigo desperta tomada por uma imensa lista que se antecipa em minha cabeça de afazeres para o dia longo que já me espreita. Exaustas, tantas vezes sem apoio, privadas de sono e imersas em um turbilhão emocional – é assim que boa parte das mulheres no puerpério se encontra cotidianamente. Dias que viram noites, que viram dias – e carregam com eles as marcas da fragilidade, do cansaço e da invisibilidade de que atravessam esse tempo de se nascer como mãe.
Eu pari e aleitei os meus filhos, carregando para além deles em meu colo as histórias de todas as mulheres da minha linhagem que foram privadas das potências de suas narrativas maternas. Quando uma mulher se torna mãe, as marcas ancestrais, culturais, sociais, além de toda memória carregada em seu DNA, vêm à tona, são experimentadas literalmente na pele. São cicatrizes profundas de uma sociedade patriarcal, misógina, racializante, colonializante, capitalística, em que a mulher negra é a base de uma pirâmide que ainda machuca demais as costas.
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Logo que meus filhos nasceram eu ouvi repetidas vezes que “fui feita para parir e aleitar”, que eu era “muito forte”, que eu aguentei a dor do parto, que tinha muito leite, como se tudo isso viesse natural e facilmente por eu habitar um corpo preto. Essas falas racistas disfarçadas de simpáticos elogios me desciam amargas demais, porque eu pensava imediatamente nos peitos cheios de leite das amas que não podiam nutrir seus próprios filhos, nas escravizadas forçadas a abortar, as que eram vendidas separadas, as que nunca puderam maternar suas crias.
A quem de fato serve essa narrativa de que a mulher negra simplesmente “sabe parir” quando temos números alarmantes de violência obstétrica e morte materna nessa população especificamente mais vulnerabilizada? Quando as taxas de desmame precoce vão contando exatamente que ainda reproduzimos um modo de cultura que separa e priva os filhos pretos de suas mães?
A Grada Kilombo nos convoca a pensar em seu livro memórias de Plantação nessa imagem da mãe negra superforte. Por um lado, essa lendária imagem de supermulher cumpre com uma estratégia política na tentativa de superar estereótipos de negligente, incapaz, preguiçosa e submissa. O grande porém é que ela se torna uma prisão, camuflando a opressão numa necessidade de cumprir com a idealidade que não legitima os danos físicos, sociais e psicológicos de ser mulher, mãe e negra nesse contexto social contemporâneo, atravessado por todas as estruturas racistas, desiguais e machistas às quais somos impostas.
Poder contar nossas histórias, encontrar ressonância, sermos escutadas e vistas dá lugar de legitimidade à nossa existência, afirma quem somos. Eu verdadeiramente sinto que essa política da narratividade nos põe na vida, problematiza enquanto sociedade que tipo de políticas públicas estão cuidando de nossa saúde, da saúde dos nossos filhos, das nossas famílias. Porque estamos constituídas em corpos que maternam com memórias e vivências de muita dor – e também de muita vontade, alegrias e amor. Sim, somos fortes – mas não só. Somos muitas, múltiplas, diversas, e existimos inteiras enquanto as mães possíveis, frágeis e reais que também somos.
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