Publicado em 23/02/2021, às 08h02 - Atualizado às 10h04 por Claudia Werneck
“Pegou o peito? Foi parto normal ou cesariana? Tá mamando bem?”. “Tem os olhos da mãe, a bochecha do avô e o nariz do pai”. É assim, graças a perguntas e comentários corriqueiros que pais e mães confirmam que sua filha ou filho recém-nascido foi bem acolhido pelo “Comitê de Recepção” na Terra. São os grupos com quem a família interage mais, como colegas de trabalho, parentes e vizinhança – o pessoal que chega primeiro na maternidade.
Basta, entretanto, que a criança nasça prematura em extremo, com uma mancha cabeluda na face ou traços de uma síndrome genética que a naturalidade das visitas se esvai. A conversa sobre similaridades entre o bebê e a família e também as perguntas óbvias e fofas deixam de fluir.
O Comitê de Recepção não sabe o que dizer diante de um ser humano que alcança o planeta afrontando expectativas sociais sobre seu modo de existir. E, como se não bastasse, ainda deixa todo mundo desconfortável, fazendo parecer inadequado e pouco sincero qualquer comentário sobre ele.
Pessoas de corpos grandes preferem recepcionar bebês que imediatamente lhes remetam a um futuro próspero. Os indicadores de sucesso são saúde, alguma beleza e inteligência farta – ainda que seja difícil avaliá-la nas primeiras horas de vida. Quando a criança nasce assim, só é possível imaginar bênçãos. Seu amanhã será abundante, para o alívio do Comitê de Recepção, que conta com essa nova geração para manter a sociedade funcionando quando seus integrantes estiverem idosos e ou sem autonomia.
Soa injusto e frio, mas a relação da sociedade com cada ser humano que nasce assemelha-se a um investimento. Ao desejar parabéns à família pela prole recém-parida, o mundo adulto se parabeniza também. Crianças saudáveis, lindas e inteligentes são percebidas como negócios rentáveis.
Por isso a estupefação do Comitê de Recepção quando as famílias visitadas lhes presenteiam com seres humanos que irão “dar trabalho” e desestabilizar o ciclo de rentabilidade de todo o sistema. É quando a sociedade não perdoa – e parte para a cultura do cancelamento. Não a das redes sociais. Outra.
A cultura do cancelamento na infância está na escassez de perguntas banais e associações triviais por parte de pessoas de corpos grandes à origem familiar e ao cotidiano de pessoas de corpos pequenos. É mais fácil de ser percebida no primeiro contato, nas visitas a recém-nascidos, mas ocorre em qualquer fase da infância. Independentemente do modo como se apresenta, é sempre um instrumento de controle e poder e ganha gravidade se direcionado a crianças. Trata-se de um ímpeto excludente sem precedentes.
De algum modo, o mundo adulto tenta, no decorrer do tempo, cancelar o cancelamento. Será pouco. É urgente desconstruir o incômodo e a cerimônia com seres humanos que desde o nascimento surpreendem negativamente as visitas, para que não se transmutem em força discriminatória. Tanta estranheza no trato de crianças recém-chegadas não faz sentido: o Conjunto Infância é necessariamente múltiplo e diferenciado. E assim será.
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